sexta-feira, 16 de setembro de 2011

O último olhar de uma ave


Manhã de inverno. Na árvore velha e seca, no alto da montanha, um urubu solitário cochilava. A bela visão panorâmica do longo e estreito e contorcido vale não o animava. Uma rajava de vento que varria os penhascos lançou-o ao abismo. Antes de chocar-se contra as pedras, estendeu as asas e voou sobre o vale. A ventania eriçava suas penas escuras e amarrotadas.
O ar gélido que vinha do mar penetrava entre as penas e atingia a pele e os ossos. Os uivos do vento e os grasnos do urubu não eram musicais e entristeciam a manhã gelada.
Lá embaixo, a bruma subia do rio e dos lagos e abaçanava o cenário. A geada cobria as plantações e a relva dos pastos.
Ele planava sobre a planície, seguindo as curvas do rio e da estrada. De cima, vislumbrou uma carroça, puxada por uma besta, que lentamente subia a estrada. Dentro, uma mulher, vestido longo e largo, que tremulava ao vento, esbravejava contra o frio, contra os solavancos da estrada esburacada e contra a lentidão da mula.
O faro do urubu, já comprometido pela idade, não o ajudava a localizar carniça. E viu num terreiro um cão imóvel. Teve esperança de que estivesse morto. Aterrissou. Porque sentia fome. Mas, ao dar a primeira bicada, o cão acordou e ganiu, fazendo-o voltar de sobressalto ao espaço.
O vôo solitário levou-o à cidade. As torres e chaminés de muitas construções eram como flechas que espetavam o céu. E a ponta mais alta e mais afiada era a da igreja.
À medida que ia se afastando da cidade, em direção ao litoral, perdia altura. O solo ia se aproximando e tudo ficando mais nítido. Quinhentos metros. Duzentos. Cem. Cinqüenta. Trinta. Dez. Cinco. Dois. Sobrevoou um branco verme que despontava da areia, às margens do rio. Um metro. Menos... Caiu nas águas frias do rio.
Debateu-se. Grasnou. Não teve forças para alçar vôo. Ia congelando e diminuindo os movimentos. De asas abertas, flutuava e se deixava levar pelo banzeiro. Enroscava-se em tranqueiras, desenroscava-se, ia seguindo e rodopiando com os remoinhos da água.
Sentia frio e fome. Estava morrendo.
Ainda semi-vivo, um peixe o arrastou para o fundo.
No dia seguinte, nas margens, penas escuras flutuavam.

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